sexta-feira, junho 23, 2017

SOBRE A ENTREGA DA SEGURANÇA DAS FLORESTAS PORTUGUESAS A UMA PARCERIA PÚBLICO-PRIVADA

“Coitado do Daniel Sanches… Assinou um papel, não fez nada!” A bolha rebentara. Oliveira e Costa estava a responder no Parlamento, na primeira comissão de inquérito ao BPN, em 2009, sob escolta policial, e recebeu a pergunta do deputado comunista Honório Novo sobre o SIRESP com esta candura. “O Dr. Daniel Sanches assinou um papel. Por acaso, a única coisa que lhe disse, quando ele se foi despedir, porque ia para ministro, foi isto: ‘Eu lamento que o senhor vá para ministro, mas há uma coisa que lhe garanto: há lá um problema nosso para resolver e se, alguma vez, alguém lhe disser que lhe pedi para assinar aquilo, o senhor não aceite, porque não é verdade. Eu não peço agora e jamais lhe pedirei que faça alguma coisa por esse processo’.”
O “problema” era o SIRESP. Mas não foi preciso pedir. Três dias depois das eleições legislativas de 2005, quando o governo PSD-CDS, liderado por Santana Lopes, estava em gestão, Daniel Sanches lá assinou o papel. Era uma parceria público-privada, entre um consórcio de empresas (PT, Motorolla, Esegur, do Grupo Espírito Santo, e SLN) e o Ministério da Administração Interna para o fornecimento de um sistema de comunicações chamado SIRESP (Sistema Integrado das Redes de Emergência e Segurança de Portugal). Custo total: 540 milhões de euros.
Mas, como era habitual nessa época de ouro das PPP, o valor podia ser um pouco mais baixo, afiança o próprio Oliveira e Costa, sob juramento, no Parlamento: “Ora bem, o que se gastou para fazer o SIRESP julgo que andará à volta de 80 e tal milhões de euros.”
A discrepância entre “o que se gastou” e quanto iria custar pode parecer difícil de explicar. Mas não tanto como as coincidências deste início de história. Recapitulando: o gestor da SLN, Daniel Sanches, sai do universo de Oliveira e Costa para assumir a pasta da Administração Interna no dia 17 de Julho de 2004 (ficaria menos de um ano em funções, saindo a 12 de Março de 2005). Entretanto, o SIRESP, que esteve parado três anos na secretária dos governantes, avança no dia 23 de Fevereiro de 2005, três dias depois de o governo em funções perder as legislativas (ganhas com maioria absoluta pelo PS). Estava, portanto, em gestão. Mas um parecer do então auditor jurídico do MAI, o magistrado Gomes Dias, permitiu a adjudicação ao consórcio de que fazia parte a SLN (aliás, o único concorrente).
Entretanto, a sabedoria negocial do consórcio (PT, GES e SLN) foi criando uma dependência funcional da sua solução no Estado. O SIRESP começou a ser instalado “a título gratuito e provisório” em 11 estações de comunicações, desde as vésperas do Euro 2004 – ou seja, ainda antes de Sanches assinar o acordo. “Para aproveitar esta oferta, a PSP e a GNR terão adquirido, em 2004, inúmeros terminais em quantidade que a IGF desconhece”, lê-se num parecer, de 2005, daquele organismo público. “A GNR não comprou nada”, explicou ao PÚBLICO (em Agosto de 2005) o porta-voz da GNR, Costa Cabral, “foi o MAI que disponibilizou esse equipamento”. Ou seja, ainda antes de Sanches chegar a ministro, no mandato de Durão Barroso.
Hoje, este sistema volta a ser notícia pelos “esclarecimentos urgentes” pedidos pelo primeiro-ministro sobre o funcionamento da rede de SIRESP no incêndio de Pedrógão Grande. As falhas do SIRESP voltam a assombrar a logística do combate aos incêndios. Mas não era essa a promessa inicial…
A renegociação
Logo depois da transição de pastas, em 2005, o negócio chegou às mãos do ministro seguinte com a tutela, o socialista António Costa (actual primeiro-ministro) que, de imediato, pediu um parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República para saber se o acto era, ou não, legítimo. Os magistrados da PGR dividiram-se. Cinco acharam que sim (entre os quais, coerentemente, o ex-auditor jurídico do MAI que deu o tal parecer favorável) e cinco acharam que não. Desempatou o próprio procurador-geral, Souto Moura, com voto de qualidade, mas uma pulga ficou atrás da orelha... A PGR concluiu que um governo em gestão não tinha o poder de aprovar o negócio SIRESP, porque não era nem um acto urgente, nem “estritamente necessário para assegurar a gestão dos negócios públicos”.
Costa aceitou o parecer da PGR e anulou, então, o despacho de Daniel Sanches. Entretanto, o novo ministro pedira mais uma série de pareceres (à Inspecção-Geral de Finanças, à ANACOM, ao Instituto de Telecomunicações e ao Instituto Superior Técnico). Todos eles levaram o ministro a decidir pela renegociação do contrato com o consórcio de que fazia parte a SLN. A IGF apontava a renegociação como forma de conseguir “novas condições contratuais, designadamente que superem as deficiências” do contrato assinado por Sanches. Se ficasse como estava, dizia a IGF, não seria “legalmente possível” concretizar o negócio. Os outros pareceres não encontraram “vícios relevantes do ponto de vista técnico”. Se os havia irrelevantes, não terão sido decisivos para decisão final…
Quem tomou conta do dossiê, politicamente, foi outro actual governante, Fernando Rocha Andrade, o actual secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. No dia 18 de Maio de 2006, o Conselho de Ministros aprovou a adjudicação ao mesmo consórcio. António Costa justificou a decisão: “O SIRESP assegura comunicações móveis de elevada qualidade a estes operadores, bem como a possibilidade de todos comunicarem entre si, o que é decisivo em termos operacionais e não é assegurado pelos actuais sistemas de rádio.” Seria “uma pequena revolução na segurança interna”, garantia, à data, o ministro. O novo contrato teria “um valor acumulado em 15 anos” de 485,5 milhões de euros, ou seja “menos 52,5 milhões de euros” do que o contrato assinado por Sanches.
Mais uma coincidência: esta terá sido a primeira renegociação complexa de um dossiê "quente" que António Costa confiou a Diogo Lacerda Machado, o ex-consultor do primeiro-ministro que agora vai integrar a administração da TAP.
No dia 3 de Julho de 2006 começou, então, a funcionar o SIRESP (na sua versão paga). Quatro meses depois, a PJ entrou na sede da SLN para fazer as primeiras buscas, por suspeitas de tráfico de influências. Na base das suspeitas da PGR estava um facto presente no parecer do Instituto das Telecomunicações: o procedimento escolhido, consultas directas a cinco fabricantes, só teve um candidato (que integrava a SLN) que poderia ter tido “acesso a informação privilegiada”.
Em Maio de 2008, a investigação da PGR foi arquivada. Daniel Sanches não foi ouvido, nem como testemunha, mas o despacho de arquivamento refere-o: “Não resulta porém dos autos que, ao proferir o despacho de adjudicação do concurso para a criação e implementação do SIRESP já durante o Governo de gestão, isso tivesse algo a ver com as suas ligações àquelas empresas do grupo SLN."
Quem aproveitou o arquivamento para encaixar mais uma peça neste puzzle foi o ex-presidente do grupo de trabalho que estudou a criação de um sistema do tipo SIRESP, durante o governo de António Guterres. Almiro de Oliveira explicou ao PÚBLICO: “Esperei três anos pelos trabalhos e conclusões das autoridades judiciais num Estado de direito... Entendi falar agora por este ser um dever de cidadania." O que tinha para revelar talvez não seja uma surpresa para os leitores. O negócio do SIRESP foi mais caro do que podia ter sido. "No nosso relatório prevíamos um investimento inicial entre 100 e 150 milhões de euros. A isso acrescentávamos dez por cento por ano, que corresponderia ao custo de exploração", explicou aquele especialista.
Ainda não foi referido, neste texto, o nome de Manuel Dias Loureiro. Formalmente, não há nenhuma intervenção do ex-ministro neste negócio. Mas em quase todos os textos sobre a génese do SIRESP há uma referência ao seu nome. Loureiro era administrador da SLN (e da Plêiade, a sociedade em que Daniel Sanches trabalhou no grupo SLN antes de integrar o Governo que aprovou o SIRESP pela primeira vez). Era presidente da mesa do congresso do PSD e deputado (quando o acordo foi assinado e posteriormente renegociado). Terá sido sua, aliás, a sugestão de contratação de Daniel Sanches, quer como executivo da Plêiade, da SLN, quer como ministro.
Por isso, e a propósito destes negócios, o então deputado do BE Francisco Louçã acusou-o de promover negócios que dependiam da calamidade dos incêndios. Indignado, Dias Loureiro acusou Louçã de “terrorismo político” e prometeu processá-lo por difamação. Até hoje não o fez, confirma Louçã ao PÚBLICO.
O resto é a história conhecida. O BPN foi nacionalizado em Setembro de 2008 – em plena crise financeira internacional – e arrasta-se pelos tribunais desde então. A SLN foi repartida numa parte “boa” (vendida à Galilei) e uma “má” (gerida pelo Estado). Mais tarde, em 2014, foi a vez do Grupo Espírito Santo se esfumar em inquéritos, políticos e judiciais. A PT valia nos últimos dias, antes de ser comprada pela francesa Altice, cinco vezes menos do que quando fora privatizada pela primeira vez.
Do consórcio que fez a parceria público-privada com o Estado, no SIRESP, só a Motorola e a Datacomp sobreviveram a estes 11 anos que mudaram muita coisa, mas aparentemente não trouxeram os benefícios da tal “revolução” anunciada no combate aos incêndios, através de uma comunicação mais eficaz entre as forças que trabalham no terreno. Mas isso será esclarecido quando o inquérito pedido pelo primeiro-ministro mostrar os seus resultados.
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Fonte: https://www.publico.pt/2017/06/22/politica/noticia/siresp-a-historia-de-uma-parceria-publica-privada-de-transparencia-1776439

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Mais uma vez, «os mais competentes!!!!!!» não são os privados...