sexta-feira, janeiro 27, 2017

ODE HERÓICA A TREBARUNA...


A final, quando a Morte inexoravel, fria,
Envôlta no mysterio e na sombra, - que horror!
Da minha alma roubar a límpida alegria,
Como quem a um jardim arranca a melhor flor,

Ao menos hei-de ter, nas noites estrelladas,
A' beira do sepulcro onde eu em paz dormir,
Uma virgem que estenda as asas perfumadas,
Engalhando o meu somno, a cantar e a sorrir...

Quem é que lhe tributa amor mais verdadeiro,
Ou com tanta paixão e fanatismo a adora?
Eu fui um seu devoto, eu fui um seu romeiro,
Empós d'ella a correr pelo universo fóra:

Celorico sentado em seu throno, na altura,
Como a estátua da peste, annoso e gemebundo,
A Guarda feia e fria; a Covilhã escura;
E o Fundão, que eu pensei ser o cabo do mundo!

Toda a Cova da Beira: Algôdres, escondido
Entre a neve a cahir, entre os lobos a uivar;
Tortosendo, um degrêdo; e, como um monstro, erguido
Com seus môrros, o Herminio os ceus a ameaçar...

Trebaruna! não há nos idiomas da terra
Nome de mais poesia ou de maior encanto:
Dás-nos prazer na paz e victória na guerra...
Bem haja o teu influxo omnipotente santo!

Quantas vezes, ao fim das batalhas, - que digo?
Viriato, o feroz soldado das montanhas,
Da patria o salvador, não se abraçou comtigo,
Embriagado no ardor das epicas façanhas!

E vinham lá da Serra os maioraes tisnados,
De seus safões de pelle, a abençoar-te tambem.
Cobria o carujeiro os covões, os montados;
O Mondego assoalhava areias de oiro além.

Desde as ribas do Côa até á velha Idanha
Eram gritos de festa, - unisono clamor:
Os moços a dançar numa alegria estranha,
As môças a saudar em mil canções o amor...

E tudo jaz na ruina: o tempo avaro, infando,
As aras derribou, ás ovações pôs termo:
Onde d'antes se ouvia o antístite rezando,
Cresce o zimbro silvestre e o sargaço, num ermo.

Eu fiz-te renascer, eu dei-te vida nova!
Quando pois eu dormir p'ra sempre, tu has-de ir,
Linda deusa beirã, guardar a minha cova,
Embalar o meu somno, a cantar e a sorrir...


Leite de Vasconcellos, Lisboa, 1892


*


Significação de alguns termos populares empregados nesta poesia:
Carujeiro - um dos nomes que na Beira se dá ao nevoeiro; outro nome é carujo.
Covões - vales na Serra da Estrela.
Engalhar - embalar, termo também usado na Beira, pelo menos na Alta.
Maioral - chefe de pastores: «maioral do gado». Diz Leite de Vasconcellos que ouviu muito esta expressão no Alentejo e que presume, sem certeza, que também seria usada na Beira Baixa, onde, como no Alentejo, também há grandes rebanhos de gado.
Safões - calções de pele que se vestem por cima das calças e se atam posteriormente, usados pelos pastores da Serra da Estrelas e também em Entre-Tejo-e-Odiana.
Sargaço - planta vulgar na Beira (não confundir com alga do mesmo nome).
Zimbro - planta vulgar na Serra da Estrela.

No poema que acima se lê, o qual copiei da sua reedição por parte da Câmara Municipal do Fundão, a devoção de ordem cultural e até sentimental que Leite de Vasconcellos, eminente figura da ciência em Portugal, quis manifestar a Trebaruna, porventura uma das maiores Divindades da Lusitânia, enquadra-se no lento mas progressivo despertar da Europa para as suas verdadeiras raízes etno-espirituais, pré-cristãs. Não há aí nenhuma evidência de que o autor nutrisse uma devoção religiosa pela Divindade - e, segundo se diz, nem se sabe se era ateu se religioso... - mas, como sói dizer-se, Roma e Pavia não se fizeram num dia, e o despertar etno-espiritual europeu do seu longo pesadelo ateu e cristão é lento mas progressivo, passando por várias etapas, das quais este singelo poema constitui um degrau particularmente notável.



1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Este blog é um hino não só à defesa da identidade portuguesa e europeia mas como à história do nosso país. Parabéns!

28 de janeiro de 2017 às 17:44:00 WET  

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